sábado, 13 de julho de 2013

Eu, Pierre Rivieri, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Um caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault

"Eis que criadas camponesas matam sem razão, mas cruelmente, as frágeis crianças que amam, que eram confiadas aos seus cuidados. A mulher de um jornaleiro, passando necessidade, não mais suportando os gritos de fome de seu filho de quinze meses, golpeia-lhe o pescoço com um cutelo, sangra-o, corta·lhe uma coxa, que come. Ela conservava, no entanto, em plena miséria, uma cabra, um pedaço de jardim, alguns repolhos. Antoine Léger, vinhadero, deixa a sociedade de sua aldeia, vive nos bosques como um homem selvagem, agride uma menina e, não podendo violentá-la, abre-a com uma faca. chupa-lhe o coração e bebe-lhe o sangue"


E aí, o que você acha que é? Literatura? Hollywood? Sônia Abrão conseguiu um furo!?


Pois são ocorridos registrados em anais de higiene publica na França, em 1835, sim, estou chocado, mas ainda mais que isso fascinado pela análise que apresenta a obra onde descobri isto, que foi por acaso, em um livro organizado por Michel Foucault, onde junto a acadêmicos do College de France transcreveu o caso “ Eu, Pierre Rivieri, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão”, este é o título do livro, pois é algo escrito pelo próprio parricida em um manuscrito que fez na prisão e se tornou peça chave do julgamento. O motivo foi ver como sua mãe fazia seu pai sofrer, sua irmã tomava partido ao lado desta, e o irmãozinho serviu de bode expiatório “O irmãozinho foi golpeado primeiro por amar a mãe, e também por ser este o único meio de jogar a cólera do pai contra ele, pois este o amava muito, e assim sua morte seria menos lamentada pelo pai.”  Ou seja, que o pai dele o odiasse por matar aquela criança tão querida, a ponto de esquecer de se apiedar dele, e desejar que ele sofresse a pena dos parricidas, por tal ato. O garoto tinha 7 anos, a mãe estava grávida de outra criança, sete meses.

Ao que isso nos remete no livro não é o que primeiro salta a vista, o clássico “no meu tempo era melhor...”, certamente você já ouviu uma pessoa idosa falar isto, o Foucover da Unicamp, o carequinha simpático, Lendro Karnal, que lembra mesmo o Foucault, já diz que sua avó diz isso, e ele a lembra “mas vó, a senhora viveu a segunda guerra, centenas de milhares de pessoas morreram em campos de batalha e câmaras de gás”. A utopia de pensar que no passado tudo era mais calmo, quando o que não existia era veiculação imediata dos acontecimentos. Estes casos mesmo podem ter tido pouca repercussão, mas não o de Pierre, que foi analisado por médicos para que se constatasse se era são, e por fim teve seu caso disputado pela justiça e pela psiquiatria, artigos de jornal, e cartas ao mesmo jornal depois, concordavam com a não condenação de Pierre a morte.. Até que o próprio rei comutou a pena em prisão perpétua, pois se chegou ao acordo de que ao menos a hora dos assassinatos aquela pessoa não fazia jus a razão. Anos depois, mantido vivo em reclusão, ele se enforca na solitária da prisão, tal era seu desgosto por não saber que merecia aquela pena, mas análises exteriores a toda sua vontade, vieram para lhe atrapalhar. É justamente  a intenção do livro mostrar o embate de discursos travado em torno dos culpados, e não mostrar a violência do primeiro período da idade contemporânea pra dizer “uau, que chocante, também faziam isso sem mídia pra animar”, e daí podemos ver que não é o vídeo game, não é o filme, que influencia por si só em uma ocorrência violenta, mas outras causas sociais, lembrando Karnal novamente, que a história humana é violenta, a história mundial é violenta, o Brasil não foge a regra, os portugueses que trouxeram isso pra cá, certo? Antes viviam aqui tranquilos indígenas, que por exemplo, invadiram aquela costa que seria a Bahia, onde Cabral chegou, e devoraram os povos sambaquis que ali viviam. A violência é sempre exclusivamente do outro, do estrangeiro, do vizinho, do rei, mancomunado com a Igreja naquele tempo que fantasiamos, não de nós, não de nossa cidade, do nosso país, daqueles camponeses obtusos como índios.

A causa social para a potencial crueldade destes camponeses era que viviam passadas três décadas da revolução francesa (a Revolução durou de 1789 a 1799, lembrem-se que estamos em 1835), que de liberdade só dera a alguns a possibilidade de possuir, de ter terras próprias e poder explorar os que não tinham, que continuavam pobres, ou obrigados a trabalhar arduamente pra sobreviver de sua propriedade. Os médicos começaram ir até esses camponeses, pois se via que era melhor conservar, digo prevenir do que comprar outro, digo remediar, era melhor cuidar dos que se tinha, do que deixar morrer para ter que adquirir outros. E os médicos viram como eles eram rudes por dentro e por fora, pele grossa, cheia de feridas. Por dentro ardia o ímpeto que não era mais contra o contrato nocivo com o soberano, pagar tributos, trabalhar em algo que nunca seria seu, “Donde os ódios entre contratantes e, Michel Foucault sugeriu-nos a idéia, o novo tipo de criminalidade camponesa (crimes interiores na família, ou sancionando a relação de propriedade, de arrendamento, de cultura de terras etc.).” Ou seja, desapareceu o rei, dono de toda terra, a monarquia foi reformulada, desapareceram os crimes contra o rei, que bem sabemos, e Foucault bem evidencia em Vigiar e Punir, uma de suas obras mais famosas, como eram punidos, guilhotina, forca, esquartejamento, tudo em praça pública, e os pedaços eram expostos, que servisse de exemplo até depois de sua morte aquele que feriu a lei, pois a lei era a palavra do sagrado pai de todos, o rei. 

Diminuíram então, por exemplo, saques aos castelos, aos arrendatários de impostos, e apareceram crimes mais delimitados, contra os novos proprietários de terras e até a própria família, cerca de 10 a 15 parricídios eram registrados por ano, diz o livro, aliás. Ou seja, o equivalente a uma Suzanne von Richtoffen por mês. Pierre, por exemplo, era um alienado, ou ser humano perverso? Era insano, por isso matou, ou matou com total razão, sem arrepender-se depois, só esperando sua condenação? Ele possuía escrúpulos religiosos, de inicio até dizia que era Deus quem o havia ordenado, e que ele conhecia a palavra de Deus, depois admitiu descumpri-la, matando, mas em uma boa causa, ainda que isso não lhe desse o direito de permanecer sem pagar por ela, era exatamente o que ele queria.

Os debates médicos-judiciais divergiam entre si, em meio a tudo isso a palavra do próprio criminoso registrada, seu desejo de pagar por seu crime, de morrer como mártir da salvação, tanto que se negou a assinar o pedido para recorrer da sentença, até que o advogado de defesa e o pai tanto insistiram.

Toda sua vida resumida, todo o sofrimento que a mãe perpetrava ao pai, todo o senso de justiça e heroísmo que empreendeu para livrar o pai daquela insana. A palavra dos homens da lei, que queriam a condenação, das testemunhas oculares, depoimentos de conhecidos sobre a vida da família e os atos de Rivieri outrora, dos médicos, que alegavam sanidade, dos médicos que alegavam insanidade, visível em seus delírios juvenis, e sua descendência, até mesmo a mãe poderia ser louca para fazer da vida de Rivieri pai tal inferno, ela lhe pedia coisas e depois dizia que comprara muito caro, que vendesse, então dizia que vendera muito barato, queria viver apartada dele, quando estavam juntos não queria deitar-se com ele na mesma cama, lhe tirava as penas do travesseiro, lhe deixava sem nada com que se cobrir a noite, mas afastada fazia-o ir até outra propriedade que tinha comprado para ela para trabalhar nela, ou contratava outros, dizendo que ele os pagaria, contraia dividas só por maldade, o homem tinha que vender terra, animais, etc., para pagar, ele não revidava, mas quando o fazia ela contava a todos como a maltratava aquele homem, ia até juízes, promotores, etc. e a todo momento o pai de Pierri tinha que ter audiências com estes para se explicar; uma vez vendeu uma propriedade e teve que tirá-la de lá a força para que o fazendeiro pudesse ocupá-la, tirou primeiro os móveis, e depois teve de arrastá-la até a carroça para levá-la embora. Sua filha conhecia de todas as maquinações e permanecia ao seu lado. Quando Pierre executou o seu plano partiu dizendo a vizinhos que agora seu pai estava livre.

Dentre o todos os discursos sobre o criminoso, ainda há o discurso do criminoso, que assim não se julga abominação, e sim herói, benevolente, era assim que eles, sem saber, claro, os oprimidos, se faziam ouvir. Voltem ao cabeçalho se não se lembram dele, depois leiam essa continuação que é com a qual concluo essa exposição. "Uns e outros ficam abatidos por seus atos. "Esta criança, diz a primeira, quis poupá-la de viver como eu, solitária. Sem alegria, mais vale morrer." a miséria. diz a ogra. Deus me abandonou." "Tinha sede, explica o ogro." Em alguma parte suas confissões gaguejantes anunciam: "Era a mim mesmo que matava". E Pierre Riviere que coroa a linhagem memorável, não grita para os vizinhos "eu matei", mas "eu morro por... meu pai" (memorial de Pierre Riviere visto anteriormente)."

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Finais são bençãos ambivalentes.